TAMPINHAS DE GARRAFA


Vivenciei minha infância em um mundo difícil de suportar, na amargura de um lar esfacelado, de pobreza e humilhação. Tinha poucos colegas, muita tristeza e um monte de sonhos silenciosos. E foi em sonhos que construí um mundo paralelo, só meu, sem tantas tribulações. Como nunca gostei de soltar pipa, jogar pião nem bola de gude, como a maioria das crianças da minha rua, meu maior prazer era jogar bola, mas nem sempre podia ir ao campinho, ou porque minha mãe não deixava, ou porque a turma não queria mesmo minha presença, principalmente pelo fato de eu ser um péssimo jogador.
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Gostava também do jogo de botão, mas não tinha dinheiro para comprar um. Daí, inventei uma espécie de jogo de botão com tampinhas de garrafa. Ah! Aquilo seria um enorme escape em minha vida! Passava horas a fio sozinho. Usava, como campo, um lastro arrancado de uma mesa velha, dois times de tampinhas diferentes, conforme a bebida, e um botão de camisa para fazer às vezes da bola. Mas não servia qualquer botão, tinha que ser um que tivesse pelo menos uma das bases "barriguda", para a "bola" poder subir nos "chutes". Tinha duas traves de jogo de botão de verdade, que achei em algum lugar. Nesse futebol, eu era todos os jogadores, o juiz, o técnico, a torcida, e – o que eu mais gostava – o narrador; criava as regras, gastava um tempão elaborando as tabelas dos campeonatos, listando as escalações dos times e, enfim, jogando! Tentava ser justo, imparcial, mas nem sempre conseguia, de forma que o Corinthians vencia com muito mais freqüência do que na vida real, e o Campinense Clube chegou até a ser campeão brasileiro, vejam só!
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Mas, fosse como fosse, o que importa é que passei muitos, muitos anos de minha vida jogando fichobol – nome que criei, aglutinando as palavras ficha, que era um termo com o qual também se designava, à época, tampas de garrafa, e futebol. A coisa se tornou uma paixão tão grande que, mesmo quando a professora Inácia me deu dois times de botão, não abandonei o fichobol. Tinha a impressão de que passaria a vida jogando aquilo. Quando estava só, quando a televisão não estava funcionando, o que acontecia quase sempre, quando a realidade apertava demais, eu ia para o quarto, punha o lastro da mesa sobre a cama, alinhava minhas tampinhas, marcava o tempo e começava meu jogo, narrando cada lance, tecendo os comentários e, claro, dando enormes gritos de gol, fugindo, assim, para o meu mundo.
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Sinceramente, não sei quando abandonei definitivamente o fichobol, não sei como ou qual foi meu último jogo, mas a verdade é que tenho certeza de que ainda sei bem como segurar a tampinha e dar aqueles chutes, de modo que, muitas vezes, quando a solidão e a tristeza apertam o peito hoje crescido, assim como apertava aquele peito menino, que não entendia que sentimento era aquele, ainda tenho vontade de pegar minhas tampinhas, dar as costas para tudo e todos, e voltar a jogar fichobol. Entretanto, agora, esse direito não tenho mais, a final de contas, não tem cabimento um homem brincando com tampinhas de garrafa! Assim, só resta deitar, fechar os olhos e sonhar, ou com um amanhã menos amargo, ou com as partidas que jamais poderei esquecer.
NILDO FERREIRA

2 Comentários

Unknown disse…
Nossa Lenildo, me emocionei com sua história, pois e se eu dissesse que eu também sinto muita vontade de jogar novamente futebol de tampinhas...Era a brincadeira mais adorável da minha infância...pois as vezes eu e mais dois amigos meus passávamos o dia inteiro procurando tampinhas diferentes, em bares, lixos, terrenos baldios e etc. tudo para a cada dia tornar nossa brincadeira mais diferente, sadia e emocionante...tínhamos mais de 120 times com diversas marcas entre refrigerantes e cervejas. O fim de nossas brincadeiras, foi quando a mãe de um colega que colecionava junto com a gente, colocou nossa caixa de tampinhas no quintal e a chuva molhou,e por ali ficou durante vários dias atá enferrujar bastante, danificando muitas delas, com isso...ficamos sabendo que a mãe dele faria algo pior, colocou na frente de casa para o lixeiro levar, sem nos consultar se podia, pois para ela aquilo significava apenas uma caixa de lixo, mas para nós representava um pedaço grande de parte da nossa infância. ficamos muito tristes porém, com as lembranças ótimas dos momentos que passávamos juntos jogando futebol de tampinha durante tardes e noites de nosso doce infância, humilde porém feliz!
Robert Fish disse…
Texto maravilhoso!!! Futebol de botão também foi minha paixão na infância... sauddades... quem sabe quando voltar a ser criança, eu reencontre meu brinquedo favorito!!! Parabens!!!