"O carro de lixo, a menina e a boneca". Crônica da Semana na Campina FM - 29/05/2017. Ouça!





Vi aquela cena três vezes nos últimos dias. No mesmo horário e lugar. Muito cedo, a manhã apenas revelando os primeiros raios de sol, no pé da subida da bela vista. De longe, avistei um casal empurrando alguma coisa, com alguém bem pequeno ao lado.

Ao me aproximar, o carro em marcha para subir a ladeira da volta de zé leal, os detalhes causam impressão. Um homem e uma mulher, ainda jovens, penosamente levam um daqueles carrinhos de madeira cheio de sucata, de objetos catados no lixo das ruas.

O homem vai à frente, no lugar em que estaria o animal em uma carroça de burro, enquanto a mulher vai atrás, empurrando para ajudá-lo a vencer o terreno íngreme. E ao lado dela, duas mãozinhas pequenas, cuja força é irrelevante, também faz o gesto de empurrar o veículo pesado.

Trata-se de uma criança. Uma menina. A idade, possivelmente, algo perto dos seis anos, certa de que está ajudando os pais.
Meu Deus! Um ser daquele tamanho e idade deveria estar na cama àquela hora. Deveria estar protegida em casa. Não na rua, naquela manhã fria, naquele caminhar forçado, naquela atividade tão dura.

Em segundos, a mente processa a cena, inconformada com aquela realidade. A carroça está pesada, cheia do lixo que jogamos fora, daquilo que não nos serve mais, que para nós nada vale.

Mas que, para aquela família, é a esperança da refeição do dia. É o sustento, é tudo, tudo o que têm.
O peso daquele carro de madeira bem pode representar a carga de um mundo insistentemente injusto, em que alguns tem tanto e outros, tão pouco. A cena é triste, e faz o dia começar amargo.

Mas, antes de engatar uma marcha rápida e seguir em frente, reparo num detalhe. Sobre o carrinho velho, perto do amontado de recicláveis, repousa uma boneca.

Aquelas do tipo bebezão, grandonas porém baratas, nitidamente surrada, mas cuidadosamente acomodada ali.
Mesmo diante de tanta adversidade, tamanha dificuldade, extrema privação, aquela menina tão pequena mantém a singeleza e inocência de uma criança, o mundo etéreo dos puros de coração.

O dia é longo, os deveres são muitos, e eles ficam para trás, somem no retrovisor.

Ficam, porém, na minha memória, como um emblema, uma lembrança de que há muita gente sofrendo no mundo, lutando duramente para ter o mínimo, enquanto a gente e tanta gente que tem o bastante, reclama da vida e vive insatisfeito.
Perdão, meu Deus, por tanta ingratidão.

E que o futuro daquela família e, sobretudo, daquela menininha seja qual o sonho que decerto ela alimenta ao brincar com sua boneca surrada.

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