Na íntegra, crônica de Félix Araújo de 1951: "Deixemos a Lua em paz"

Na crônica que segue abaixo, Félix Araújo, que havia sido, no passado, militante comunista e abandonara as fileiras vermelhas condenando seu radicalismo, a partir de uma notícia internacional fala condena os extremismos ideológicos, com foco, principalmente, no comunismo e dura crítica aos seus adeptos, e apresenta aquela quadra da História como “o século do medo”. Leia a crônica, escrita em 1951, na íntegra:

Deixemos a Lua em paz

Os jornais dos últimos dias estamparam uma notícia que bem define, infelizmente, a atmosfera de medo reinante em todos os círculos da sociedade contemporânea. Vivemos uma época de intranqüilidade permanente, de pânico generalizado, de terror epidêmico. Os povos não mais confiam uns nos outros, os governos não crêem nos povos que dirigem e, pior ainda, os dirigidos não mais acreditam nos seus dirigentes.

Vivemos, realmente, um grande século. Porém, a legenda com que pretendemos fixá-lo na história está errada. Não é este o século da Luz, é, sim, o século do medo. Os comunistas, como todos os fascistas, tremem de medo do capitalismo e, pela quinta coluna espalhada em todos os países, sabotam e arruínam as instituições seculares. O capitalismo, com medo da onda vermelha, promove uma corrida vertiginosa para a guerra. E, assim, todos com medo uns dos outros, vão conduzindo a pobre humanidade para horizonte cada vez mais confuso e perturbador.

A notícia de que falamos, inicialmente, é a de que um grupo de cientistas esteve reunido em Londres, estudando um meio de evitar a ocupação da Lua pela Rússia!

Para os curiosos e assombrados técnicos, a Lua, a amiga dos namorados, a companheira dileta dos amantes, a irmã do poeta, o sonho dos jovens e a recordação dos velhos, poderá, em qualquer momento, ser transformada numa base de operações contra a Terra, pois os vermelhos estão cogitando de sua ocupação por foguetes interplanetários.

A notícia, entretanto, longe de nos parecer ridícula, nos causa piedade. Ela bem define como o capitalismo e a democracia estão desorientados na luta pela sua sobrevivência.

Por que, em realidade, pensar na Lua, se o problema angustioso e terrível está aqui mesmo, na Terra?

Enquanto a Lua, no alto do céu, assiste impassível os beijos dos namorados e os prantos do mundo, é aqui, nesse nosso confuso e infeliz planeta, que se trava a grande batalha.

A democracia precisa, para sobreviver contra a onda de ditaduras sanguinárias de esquerda e de direita, fincar os pés na realidade da Terra, penetrar a alma dos povos, resolver os seus problemas, cuidar das suas necessidades.

Os comunistas são hipócritas e inteligentes. Pela inteligência, eles conseguem perceber muito bem o que os povos estão exigindo e reclamando. Pela hipocrisia, eles se apresentam como os grandes defensores dos povos, e, iludindo a boa fé das massas, prometem-lhes um paraíso sobre a terra, para lhes dar a escravidão da morte. E são, sobretudo, perigosos, por isso mesmo, porque empregam as armas mais terríveis: a inteligência e a hipocrisia em suas manobras demagógicas.

Que deveria fazer a Democracia para sobreviver? É muito pouco, é muito simples. Bastaria penetrar-se da realidade moderna, adaptar-se econômica e politicamente ao anseio dos povos contemporâneos, reclamar dos seus mandatários a fidelidade ao pensamento democrático, ao governo do povo, pelo povo e para o povo.

Só venceremos o comunismo melhorando a vida dos povos. E não se consegue isso pensando na Lua, a deliciosa companheira dos amantes e dos boêmios.

Deixemos a Lua em paz, no seu reinado de claridade e de sonhos. E cuidemos da nossa pobre Terra, da terra aflita dos homens. Aqui, entre prantos e esperanças, é que se decidirá o drama do nosso destino.

Novembro de 1951
Félix Araújo – Obra Poética (Crônicas), páginas 247-249

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