EM NOME DO TIO: DE JOSÉ CLEMENTINO DE SOUTO A JOSÉ ALVES SOBRINHO, O NOME QUE SE TORNARIA UM DOS MAIS IMPORTANTES DA LITERATURA POPULAR BRASILEIRA

Capa da Cordeletras de agosto de 2007
Aos 11 anos, José Clementino ouviu pela primeira vez uma cantoria. Foi amor à primeira audição. Durante os dois anos seguintes, o som da viola e do repente dos poetas ressoaram em seus ouvidos, mente e coração, como um chamado irresistível à vocação que daria sentido a toda a sua existência. Com treze anos, ganhou, enfim, uma singela viola, fabricada por um vizinho. Estava selado o destino, definida a trajetória daquele que rodaria a Paraíba e estados vizinhos cantando sextilhas e desafios, e que, mais tarde, tomar-se-ia um pesquisador da literatura popular, arte da qual se faria um dos mais importantes nomes.

Não, todavia, com o nome de José Clementina de Souto, pois o pai, ao descobrir que o filho andava envolvido com cantorias, quebrou-lhe a viola na cabeça. Ao saber disso, um tio do jovem poeta, José Alves, escrivão, homem de cultura, que também era padrinho do moço, tomou as dores do afilhado: "Compadre, você quebrou a viola, mas não pode quebrar uma vocação", argumentou. "Filho meu não vai usar meu nome para ser cantador", foi a resposta que ouviu. Retrucou com uma solução que mudaria a vida do jovem José Clementino: "Sendo assim, ele usará o meu nome. Passará a se apresentar como José Alves Sobrinho". E foi assim que José Alves Sobrinho fez-se, definitivamente, cantador: "Ganhei o oco do mundo aos quinze anos, e não pude voltar em casa, por muito tempo, porque a. surra seria grande. Apenas depois de muito tempo meu pai aceitou minha vocação" conta o poeta.

Uma vocação que, antes mesma daquela noite em que conheceu a cantoria, já dava sinais aos mais atentos, como o professor e poeta João Pinto Sobrinho. Nascido em Pedra Lavrada, então distrito de Picuí, José Alves aprendeu as primeiras letras nas escolas das fazendas. E foi numa delas que conheceu , aos oito anos, o professor João Pinto, que, como método alternativo à temida palmatória, usava uma ferramenta muito mais delicada: a poesia. “Ele punha nas nossas mãos alguns folhetos, para que escolhêssemos uma estrofe e decorássemos, para apresentar na sala de aula. Quem melhor recitasse seria aplaudido por ele e pelos colegas", relembra. Numa dessas ocasiões, o menino José, ao decorar alguns versos, fez uma espécie de remendo por conta própria, sem qualquer pretensão, apenas por achar que deixava a poesia mais bonita, o que fascinou o mestre.

No escritório de trabalho, prateleiras lotadas de pesquisas
Em seguida, o professor pediu à turma que fizesse uma quadrinha, cujo tema era "mãe". Mas, a mãe do menino-poeta morrera quando este sequer havia completado dois anos de vida, passando a ser criado pelos avós. "Ele nos ensinou como se fazia uma quadra. Fui para casa e passei a semana lutando para fazer a poesia”, conta José Alves. E, assim, saiu a quadra: "Como eu não cenho mãe / Como todo mundo tem / Minha mãe é vó Dionísia / Que me abraça e me quer bem". O professor aplaudiu a obra do seu discípulo.

"Não era nada demais a quadrinha, mas ele fez uma festa, dizendo que eu era poeta. E botou na minha cabeça que eu era poeta, e estou até hoje acreditando nisso", sorri. E foi acreditando nisso que José Alves começou sua vida de cantador, andarilho pelas estradas da poesia, fazendo parceria com outros tantos cantadores, inclusive a lenda Zé Limeira, o “Poeta do Absurdo” do livro dc Orlando Tejo. José Alves ainda lembra bem do primeiro encontro: "Ele usava uma cabeleira grande e, ao me ver, perguntou ao cantador que me acompanhava, João Severo de Lima: “João Severo quem é esse / rapazin da cabeleira? / Será desses vagabundos / Que vêm aqui pro Teixeira / Andar mais Zé Marçalino / Atrás de mulher solteira?".

Anos depois, foi levado por Assis Chateaubriand para Pernambuco, onde por quatro anos cantou num programa semanal da Rádio Clube, chamado Noites Matutas, como contratado, e mais dois anos cantando por cachê.

De volta às terras paraibanas, esteve por dois anos na rádio Tabajara. Depois de 29 anos, teve que abandonar as cantorias, devido a um surpreendente problema nas cordas vocais. Acabou indo trabalhar para uma empresa terceirizada que prestava serviço ao antigo campus II da UFPB, hoje campus I da UFCG, fazendo pesquisa de campo, no tema da poesia popular. Tomou gosto pela pesquisa, foi contratado pela universidade e, em parceria com o professor Atila Almeida, encetou novas pesquisas, que resultaram em algumas publicações, como “Contos Populares do Brasil”. Ainda hoje tem as estantes do escritório cheias de vasto material de pesquisa. E foi estimulado pelo professor Atila que voltou aos estudos, concluiu o ginásio e chegou, aos 62 anos, a ser aprovado no vestibular para o curso de Letras, que não pode cursar em virtude dos horários, que chocavam-se com o expediente do trabalho.

Hoje, aos 86 anos, tem cinco livros escritos, um a ser publicado — "Eu e os cantadores com quem cantei" — e vários folhetos, além de “A História da Policia Militar em Versos” e “A História de Campina Grande em Versos”, este último, ele faz questão de dizer, trata-se de uma declaração de amor à cidade Rainha da Borborema: “Tudo o que sofri na vida, vim para Campina e curei. Não acredito que tenha um campinense que queira mais bem a Campina Grande que eu", diz, emocionado.


Na foto, com o amigo Manoel Monteiro
Mas, José Alves é daqueles que nada mais precisavam fazer para declarar o afeto ao torrão onde se estabeleceu, pois sua simples presença já se configura verdadeira honra a qualquer terra. Qual cidade não se ufanaria de ter entre seus filhos, quer naturais, quer adotivos, figuras como José Alves Sobrinho. Ou, como Manoel Monteiro, seu amigo, de quem fala com a voz embargada pela emoção: "Devo muito a Manoel Monteiro, um homem que é extraordinariamente poeta, de quem tudo o que se disser é pouco, pelo talento que tem, a quem a literatura popular deve muito, pelo esforço que empreende constantemente por nossa cultura. Quero bem a ele como a um irmão", diz, apontando entre vários certificados de honra ao mérito, a foto na parede, como um troféu, onde os dois aparecem conversando.

De certo, a Paraíba, o Brasil e a literatura popular devem muito a Manoel Monteiro. De certo, devem, também, muito a José Alves Sobrinho. Um nome que surgiu para ser eternizado na nossa História.

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Matéria minha de 2007, feita para a extinta Cordeletras, revista editada por mim e meus amigos Márcio Santana e Mica Guimarães. Ao fim da matéria, seu José Alves honrou-nos oferecendo-se para colaborar, gratuitamente, com a revista, e passou a assinar uma coluna, "Uirapuru".

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