ISSO NÃO É DEMOCRACIA

Ano de eleições. Em breve, um clichê repetido a cada dois anos será amplamente repetido na mídia, principalmente pelos próceres da Justiça Eleitoral brasileira: festa da democracia, termo que se refere ao dia da votação, ou ao resumo do processo eleitoral como um todo. Toda vez que ouço a expressão, um pensamento perpassa minha mente, como um raio: isso é a democracia à brasileira, ou seja, apenas votar? Tristemente, parece que sim.

O voto é, com toda a certeza, uma ação democrática básica e fundamental. Não há democracia sem ele. Mas, da mesma sorte, não se faz um sistema verdadeiramente democrático apenas no ato de, bienalmente, o eleitor apertar as teclas da urna eletrônica, escolhendo seu candidato preferido. Democracia é, por semântica e princípio, poder do povo, logo, seu exercício apenas começa no voto. Esse mesmo poder, para legitimação do sistema, tem de se fazer presente ininterruptamente, na gestão da coisa pública, nas decisões tomadas por aqueles que foram escolhidos pelo povo, como seus representantes.

Isso acontece atualmente? Claro que não.

Em primeiro lugar, o voto no Brasil não é livre, pelo menos não como teria de ser. Não o é porque a manipulação eleitoreira assola o País, supostos líderes fazem negociatas políticas indicando a quantidade de votos que garantem, por ter eleitores de cabresto; títulos de eleitor são xerografados em véspera de eleição, como forma de pressão psicológica sobre pobres miseráveis que vendem seus votos em troca de consultas médicas, cestas básicas ou uma mixaria qualquer – aqui em Campina Grande, por exemplo, na primeira eleição no sistema eletrônico, um ex-vereador, então candidato à reeleição, dizia a seus eleitores-comprados que a urna tinha uma câmera que filmava em quem o sujeito votava. E muitos acreditaram.

Além desse tipo vil de coerção, há outros mecanismos mais incrementados. É o caso do próprio marketing eleitoral. Claro que não sou contra os marqueteiros e seu trabalho, mas o fato é que esse instrumento, da forma que tem sido usado, vem tornando as campanhas verdadeiras novelas, encenações ficcionais, onde muito daquilo que realmente é o candidato esconde-se sob a maquiagem que o transforma num produto quase irresistível, ainda mais ao eleitorado incauto – que é a maioria.

Assim, compramos muitas vezes gato por lebre, vencendo não quem seria de fato o melhor gestor, mas quem tem o melhor marketing. Pior é que, como um produto de mídia que a gente compra enganado e leva pra casa, mas logo dá defeito, na eleição seguinte o mesmo marketing busca nos convencer de que ele funcionou direitinho – e, às vezes, a gente acredita.

Democracia tirânica

Outra deturpação do sistema democrático vigente: votamos no sujeito, levando-o, com nosso voto, a posições e cargos de proeminência, para que ele, estando lá, torne-se nosso senhor, e nós viremos seus lacaios. A maioria treme diante da figura de um vereador, prefeito, deputado, senador, governador... imagina ante o presidente! E não são poucos os que, ocupando tais cargos, realmente agem como pequenos reis: mandam, desmandam, ameaçam – até seus familiares agem assim. Que tipo nefando não é o filhinho de papai político, doninho do mundo.

Seria isso democracia, um sistema onde, ao invés de sermos regidos por reis de trono hereditário ou ditadores escolhidos intramuros, elegemos nossos próprios opressores? Se for assim, é caso de ao menos escolhermos aqueles cujos chicotes nos aflijam menos?

Imoralidade política

Outra evidência de que temos apenas uma sombra do que deveria ser a democracia é a imoralidade que rege o processo eleitoral. Já mencionamos a compra de votos, mas é preciso aprofundar. Sabe-se que é quase impossível alguém eleger-se sem dispor de vultosos recursos para a campanha. É preciso dinheiro para mídia, propaganda, combustível, dinheiro para potencializar o marketing que transforme o candidato num produto de interesse, comprável... E, claro, fundamental é ter recursos para comprar votos e lideranças. É cruel, mas é assim, ou não?

Que democracia é essa, onde o pobre não tem a mínima chance em uma eleição, sendo esmagado como formiguinha até pelo filho de um figurão que disponha de poderio financeiro, muito embora nunca tenha movido um dedo pelo bem da sociedade? Eu afirmo a hipótese: isso não é democracia, no máximo um sistema onde, ao invés de sermos regidos por reis de trono hereditário ou ditadores escolhidos intramuros, elegemos nossos próprios opressores.

Tem jeito?

É preciso crer que sim, embora a esperança quede-se a não ser a última que morre, falecendo e deixando-nos sós neste mundo, incrédulos quanto ao futuro. Tem jeito se o povo, essa massa gigante e multiforme, adquirir consciência política, moral e cidadã. Isso é que é o difícil da história. Ainda mais sabendo todos que o sistema educacional, intencionalmente, no máximo oferece conhecimentos gerais genéricos e superficiais, não tendo a menor competência ou vontade de construir indivíduos conscientes.

Ainda mais quando a imprensa é manietada, não se permitindo o jornalismo livre, cassando-se diplomas, comprando-se jornalistas e empresas de comunicação e lançando-se no fogo quem não se venda, empurrando quem tem seriedade mas também tem barriga, filhos e contas a pagar para a tumba do silêncio, ou à escolha de um grupo a quem se apegar.

Ainda mais quando o judiciário é partícipe e conivente com a imoralidade, respaldando a canalhice dos poderosos com leis que servem aos interesses das minorias, com uma Justiça em que o povo não pode crer, porque é injusta.

Não há autêntica liberdade, logo não há democracia. Construímos um sistema que é jovem, renascido há pouco mais de duas décadas, mas desde o início eivado de vícios, deformidades e contradições insanáveis. É preciso reconstruí-lo, da base, para que possamos sonhar com uma democracia mais coerente com seus princípios elementares mais básicos. É possível? Não sei. Mas tentar é preciso, e tudo começará pela consciência. Essa é a luta.

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