Meu avô comunista


Tenho poucas lembranças do meu avô materno, que morreu quando eu ainda era muito pequeno. Recordo-me apenas dele chegando em casa, de terno e valise, e o casal de cachorros pequenês indo recepcioná-lo já no portão.
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Como desde sempre fui extremamente resignado nesse assunto de relacionamento familiar, não acompanhava Biana e Duque – esses eram os nomes dos cães. O velho retornava aos cachorros cada carinho recebido. Para mim, um rápido afago no cabelo. Para a minha avó e meus tios, nem se quer boa tarde. Ele tinha lá suas razões para isso. Com certeza, naquela casa, quem mais o queria bem eram os cachorros. E a recíproca era indubitavelmente verdadeira.
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Aliás, penso que a festa que os bichinhos faziam quando meu avô chegava era também de alívio, qual a dizer: “Chegou nosso protetor”. Isso porque minha vó, mulher amarga, mesquinha, passava os dias a quebrar chicotes de galhos de goiabeira no lombo dos infelizes. Coitados, mal sabiam a sorte que breve os aguardava.
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Certa noite, enquanto conversava com um vizinho, vô foi atacado por um AVC. Passou alguns dias no hospital e morreu. Desde então, aquela casa, sempre abundante de conversa e comida para quem quer que chegasse, amigo ou estranho, família ou agregado, tornou-se um sepulcro de pessoas vivas. Restaram lá minha avó e um casal de filhos quarentões que nunca tomaram rumo na vida. Os vizinhos deixaram de ir lá. Os familiares também. Eu nunca quis envolvimento com nenhum deles. Gente complicada, sem educação, só vive de briga, uma verdadeira mundiça, como bem define a expressão nordestina.
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Biana e Duque viveram dias de horror, sendo cruelmente espancados todos os dias. Ainda lembro que, às tardes, pela hora que o velho chegava em casa, eles iam para o portão, olhando de um lado para o outro, ora abanando o rabo, ante qualquer movimento na rua, como a pensar que era o dono querido, ora pondo o rabo entre as pernas: decepção. Finalmente a velha deu os cachorros. Duque foi para a cidade de Pocinhos, e Biana mudou-se para uma casa no bairro das Malvinas. Melhor assim.
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Pois bem, não falei que meu avô se chamava José Antônio Eufrauzino, e que era presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município.
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Passados tantos anos, estava eu elaborando um material anti-Lula, como a arte ao lado, quando chega um senhor que, conforme já sei, é do MST, e um dos líderes de um assentamento na cidade. O homem observa a arte impressa com os dizeres: “Lula tem as mãos sujas”, que ele lê a meia voz. Percebo que não gosta nadinha disso, mas não diz nada.

- Você pode digitar um ofício para mim? – pergunta.
- Posso, com certeza. Dê-me as informações, por favor – respondo.

No meio do ofício, que era um convite ao secretário de saúde do município para fazer uma visita ao assentamento, quando pergunto pela localidade, ele responde:

- Fazenda Logradouro, proximidades do Sítio Lucas, assentamento José Antônio Euflausino.

Tive vontade de rir da coincidência. Quando falei para ele que o tal era meu avô, não fez qualquer cara de espanto, apenas me pediu uma foto do velho para colocar lá na administração do assentamento. Terminei o ofício, prometi a foto, e ele foi-se agradecido. Mas fiquei imaginando o que deve ter saído pensando aquele homem, no mínimo que eu era uma ovelha negra, que se meu avô tivesse vivo morreria de desgosto por ter um neto anti-esquerdista... Essas coisas.
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Não sei como seria esse relacionamento com o velho Zé Flosino, como costumavam chamá-lo. Acho que seria distante, sem muito envolvimento, como costuma ser com toda a minha família. Mas, é divertido saber que, aqui, meu avô é reconhecido como um modelo entre esses movimentos políticos, cheios de ideologias comunistas, disfarçados de movimentos sociais. É muito divertido.
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Até porque Zé Flosino era um autêntico comunista: presidente do sindicato, sempre incentivando a luta de classes e, ao mesmo tempo, dono de cinco imóveis na mesma rua, dentre outras coisas mais que, antes que algum leitor quede-se a imaginar que este pobre estudante herdou alguma coisa, saiba logo que a citada família mundiça já transformou quase tudo em dinheiro, e o dinheiro em feijão, e o feijão em merda há muito tempo.
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Lenildo Ferreira

7 Comentários

kkkkkkkkkkkk, que final cruel! :p
rapz, muito legal essa história, e a foto de Seu Zé Flosino então, hahaha.

teu avô era um comunista legítimo!
rapz, agora é que as peças do quebra-cabeças se encaixaram: seu avô, com todo respeito, era na verdade -- e a foto não me deixa mentir -- o Seu Barriga, do Chavés. Né ele que tem um mói de casa tb né?
Anônimo disse…
Meu amigo tu para com essas gaiatisses.O véi já bateu as botas e tu fica brincando com o finado(que...O tenha).Numa coisa Marcio tem razão.O véi é a cara do seu barriga do seriado de chaves.Outra coisa,Se o véi ainda fosse vivo teria uma grande decepção em saber que o seu neto é um camarada super rebelde.E diga-se de passagem o velho teria toda razão em pensar isso sobre tuE por último quero te dizer que:deixa o véi descansar em paz seja lá onde díabo tiver.
Givanildo Santos disse…
Rapaz, e eu que sempre "matutava":
De onde "diacho" encontraram o nome do camarada LENIldo.
Como diria o camarada SANT'ANA:as peças do quebra-cabeças se encaixaram.

P.S.
O texto ficou bacana.
Anônimo disse…
Odorei o comentário de Márcio, certamente o seu avô parecia o "Seu" Barriga.
E olha que sua família já teve um membro ilustre.
Ótimo texto e o final realmente é extraordinário.
ALine Durães
Taty Valéria disse…
Pôxa, é incrível encontrar alguem que cursa jornalismo ser assumidamente anti comunista.
Vc definiu bem o que é uma família.
Mundiça foi o melhor termo que eu poderia ter encontrado.
Parabéns pelo texto!
Anônimo disse…
Lenildo Ferreira... agora conheço suas origens! Ah, quando virem me falar do assentamento de EUFRAZINDO... como já dizia o boy de ontem, agora sei da história! Tu é uma pessoa muito engraçada mesmo!