O ENCONTRO DO SÁBIO COM O BURRO


Seguia um sábio o seu caminho, absorto em ponderar os obscuros mistérios da existência humana e esquadrinhar os quase insondáveis pensamentos de outros sábios, seus predecessores, quando deparou-se com um burro, que pastava à beira do caminho. Admirou-se com a visível truculência daquele animal, revelada em sua deselegante forma de alimentar-se e, ao mesmo tempo, excretar alimentações já processadas, e chocou-se com o fato de estar com as extravagantes partes pudentas, desavergonhadamente, à mostra. Mas, de bom coração que era, resolveu aproximar-se e ajudar aquele ser tão atrasado na escala evolutiva de Darwin.

- Bom dia, senhor burro.

O comilão, com ar de pouco interesse, apenas respondeu com um curto relincho, que expôs, para repugnância do mestre, seus dentões amarelos e cobertos de fios de capim.

- Sou um sábio, mestre das ciências relativas, doutor em conhecimento universal, especialista em comunicação teórica-hipotética-filosófica. Desejo, com meu brilho, ajudá-lo a vencer as trevas da ignorância.

Aqui, o burro ergueu as orelhas, arregalou os olhos e pôs-se a prestar atenção no sábio que, percebendo isso, respirou fundo e começou a discorrer sobre a longa trajetória da epistemologia, desde a revolução biológica-intelectual até os filósofos gregos, com destaque para Platão e Sócrates, passando pelos pais da Teologia cristã, Agostinho, Tomáz de Aquino e Jerônimo, até os iluministas e os famosos pensadores contemporãneos, como Freud, Max Weber, Durkheim e Paulo Freire.
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A seguir, ainda percebendo a nuvem do desconhecimento sobre seu discípulo burro, o sábio tentou aplicar exemplos através de alegorias e parábolas, dissertar da maneira mais simples que podia imaginar, traçar uma linha cronológica inserida nas praxes funcionalistas e até fenomenológicas, efetuar a conexão ascendente de sua homilia pelo uso farto de sequências de sinônimos e, de igual modo, da perquirição da polissemia das palavras. Mas, nada de resultados! O burro continuava a fitá-lo com aquele semblante de leso, até com um ar de riso que irritou o mestre.

- Seu burro! Você não está compreendendo minhas tão simples palavras?!

Aqui, o sábio ponderou que, se baixasse mais um pouco o nível de sua retórica, daqui a pouco estaria relinchando também. Esse pensamento lhe trouxe calafrios, de forma que, sobressaltado, mandou o burro para o inferno de Dante, com as seguintes palavras:

- É de sua natureza ser ignóbil, e não irei me submeter ao vilipêndio de tal perda de tempo!

O burro limitou-se a responder apenas:

- Hiiiiiiimmmmm....Rooooommmmmmmmmm......
- Hiiiiiiiimmmmm....Roooommm!!!

E repetiu:

- Hiiiiiiimmmmm....Rooooommmmmmmmmm......
- Hiiiiiiiimmmmm....Roooommm!!!

Em seguida, ergueu o rabo e, como diria o sábio, deu vasão - e que vasão! - ao sempre frequente e abundante produto final de seu processo digestivo. Ou seja, deu uma cagada que formou uma enorme esparrela de merda.
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CONCLUSÃO

A comunicação só se consolida quando a compreensão da mensagem é clara e objetiva. Isso é lógico. Assim, ao comunicar-se com o burro, é mister ao sábio encontrar sua freqüência de compreensão, para que haja tal comunicabilidade. Isso porque, como também é lógico, não é possível ao burro subir ao nível do sábio, até porque, se o fizesse, já não seria burro, mas sábio. Entretanto, ao inclinar-se até a abissal ignorância do eqüino, a fim de comunicar-lhe, o sábio não torna-se burro. Isso só acontece quando não consegue fazê-lo. E, assim, torna-se um verdadeiro inútil, porque mais proveito há em um inteligível diálogo de burros que em um elevadíssimo, complexíssimo e inutilíssimo discurso de um sábio que não é capaz de se fazer entender.

Em casos como esse, é melhor ser burro que sábio.
LENILDO FERREIRA

3 Comentários

ótimo texto!
mas acho q vc se equivocou na interpretação da história: o burro conseguiu sim acompanhar a explicação do sábio, prova disso é que enquanto este cagava pela boca aquele o fazia pelas "partes pudentes", mas isso não implica dizer q não houve feed-beck, ou que não se poderia aplicar a esse caso o paradigma semiológico-dialético-frankfurtiano.
Paula Theotonio disse…
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Paula Theotonio disse…
De que vale o conhecimento a um sábio se ele não sabe como expandi-lo?
Muito bom o texto! Pregue-o logo lá na porta da sala. Ou do lado do meu "Segunda, 20h10: Começa o martírio psicológico".